Publicado em: 21/05/2025 às 08:00hs
Os impactos ambientais das atividades humanas têm sido, há décadas, alvo de estudos e interesse dos pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento. Não é diferente no que se refere ao setor agropecuário, em particular, e aos chamados sistemas agroalimentares de forma mais ampla. Na economia, cunhou-se o termo externalidade para identificar, por exemplo, os efeitos ambientais não compensados das atividades produtivas ou do consumo. Esses efeitos podem ser negativos ou positivos e não são somente os efeitos sobre o meio-ambiente, embora estes sejam os mais frequentemente ilustrados. Por exemplo, o lançamento de efluentes das leiterias ou da suinocultura nos rios e ribeirões, sem tratamento prévio, gera uma externalidade negativa. O licenciamento ambiental, taxas pelo uso de água e até as multas são instrumentos que buscam controlar essas externalidades, mas também podem, de alguma forma, internalizar seus custos, mesmo que parcialmente, nos preços de mercado.
Recentes relatórios da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (Food and Agriculture Organization – FAO), publicados em dezembro de 2023 e em dezembro de 2024, intitulados “O Estado da Alimentação e da Agricultura” (The State of Food and Agriculture – SOFA), apresentam uma proposta metodológica para estimar estes custos das externalidades dos sistemas alimentares dos países. A metodologia considera não somente os custos ambientais, mas também os de saúde pública e os sociais, designados pelos autores como custos ocultos (“hidden costs”) dos sistemas agroalimentares. A preocupação expressa ao introduzir a proposta metodológica é que tais custos devem ser computados nos preços dos alimentos, para se obter “preços verdadeiros”.
Essa internalização seria promovida a partir da adoção de políticas públicas pelos países, com o objetivo de estimular um ajustamento mais rápido dos sistemas alimentares para modelos mais sustentáveis. Essa sustentabilidade é entendida não apenas do ponto de vista ambiental e social, mas também como a ênfase na produção de alimentos de melhor qualidade nutricional.
A metodologia adotada no SOFA prevê a incorporação de externalidades positivas, por exemplo, a alimentação escolar e seus efeitos positivos sobre os resultados educacionais e na redução das desigualdades, além de apresentar às crianças novos alimentos. No entanto, os exercícios de estimação desses custos ocultos já desenvolvidos e apresentados nos relatórios, inclusive para o caso do Brasil, não evidenciam claramente tais externalidades positivas, as quais também estão presentes nos sistemas alimentares brasileiros.
Os “custos ocultos” dos sistemas agroalimentares foram estimados para 153 países e para o período de 2016 a 2023. É um trabalho de fôlego e desafiador que, ao ser conduzido com o apoio da FAO, tem potencial para um significativo impacto na transformação dos sistemas agroalimentares em direção à sustentabilidade, à equidade e à uma nutrição adequada. Para o Brasil, estes custos alcançaram um montante de US$ 426,61 bilhões, dos quais a maior parte relacionados aos custos ambientais, com cerca de US$ 293,65 bilhões, seguidos de custos de saúde pública, com de US$ 129,7 bilhões, e os restantes de US$ 3,26 bilhões de custos ocultos sociais.
O SOFA preconiza a alteração dos preços em favor de opções mais nutritivas e sustentáveis, por meio de uma política de tributação dos alimentos ultraprocessados e de subsídio ao consumo de alimentos saudáveis. Contudo, a ideia de que incentivos fiscais podem ser uma resposta eficiente ao problema dos preços de mercado mais altos praticados para os produtos mais saudáveis esbarra na pequena ou nula margem de manobra fiscal dos estados, até mesmo no caso de países industrializados. Um risco importante que não se pode desconsiderar é que tais políticas acabem resultando em uma taxação adicional justamente sobre o consumo de alimentos para os mais pobres, que já sofrem de algum tipo de insegurança alimentar.
A rotulagem da pegada de carbono em produtos comercializados no varejo e a rotulagem nutricional, ainda adotada de forma voluntária pelos países europeus e que classifica os alimentos conforme seu perfil nutricional, são algumas das iniciativas que, de certa forma, já buscam direcionar o mercado e os consumidores para a identificação dessas externalidades. Na medida em que os preços desses produtos reflitam essas diferenças no grau de externalidade da produção e/ou do consumo desses alimentos, a internalização dos custos ocultos pode se concretizar. Como essa internalização pode impactar os preços dos alimentos é um desafio para os economistas e outros analistas.
De acordo com o SOFA, no longo prazo, as melhorias na saúde pública que levam ao aumento da produtividade poderiam se traduzir, segundo o documento, em maior renda familiar. Nesse caso, mesmo que as dietas mais saudáveis sejam mais caras, o aumento da renda poderia ajudar a compensar essa despesa adicional. Todavia, o efeito positivo de dietas saudáveis na renda familiar deve ser observado mais a longo prazo, enquanto o impacto negativo do aumento dos preços deve ocorrer no curto prazo, o que pode acarretar a elevação nos índices de insegurança alimentar.
Em mais de um momento, o documento indica as incertezas envolvendo o cálculo desses custos, seja no que se refere às limitações dos dados utilizados, ou quanto aos limites da metodologia empregada. Por exemplo, ao não considerar os custos associados ao crescimento infantil, à exposição a agroquímicos, à degradação da terra, à resistência antimicrobiana e às doenças causadas por alimentos inseguros.
Logo, é importante ter cautela com essas estimativas, principalmente ao se propor discutir instrumentos de políticas públicas visando incluir os custos ocultos na precificação de alimentos. Principalmente, diante de um quadro mundial no qual a FAO estimou subnutrição entre 8,9% a 9,4% da população global em 2023, o que, considerando o valor médio, representaria 733 milhões de pessoas, cerca de 152 milhões a mais do que em 2019 (SOFI/FAO, 2024). A evolução dos preços dos alimentos tem um papel essencial na análise dos fatores de risco para a insegurança alimentar, de modo que políticas que visem ajustar esses preços devem ser avaliadas com muito cuidado.
Há um interesse significativo entre pesquisadores brasileiros de diversas áreas e instituições sobre o tema da internalização das externalidades e no cálculo dos custos dos sistemas agroalimentares e de sua transição para padrões mais sustentáveis. Considerando a expertise do Cepea em estudos relacionados às cadeias de valor de produtos agropecuários e florestais, criamos um grupo de pesquisa para discutir a metodologia, os dados e o impacto do SOFA 2023/2024 para o Brasil. Este grupo é composto por pesquisadores em economia aplicada, além de especialistas em nutrição e saúde pública, ciências agrícolas e ambientais, tecnologia da informação, história econômica e políticas públicas. Nosso objetivo é contribuir para a discussão iniciada pelo SOFA, buscando avanços metodológicos potenciais para a organização de bases de dados mais abrangentes sobre o contexto brasileiro, bem como na promoção de discussões para avançar a integração desses achados em políticas públicas.
Dada a diversidade do Brasil em sistemas de produção agrícola e de distribuição de alimentos, seu papel como grande fornecedor de alimentos e sua significativa desigualdade social, o País oferece um caso altamente relevante e abrangente para análise. A proposta deste grupo de pesquisa inclui a organização de reuniões de trabalho, o desenvolvimento de textos reflexivos e artigos científicos baseados em contribuições teóricas e metodológicas e o fomento de colaboração entre academia, partes interessadas e formuladores de políticas públicas.
Sílvia Helena Galvão de Miranda - Pesquisadora do Cepea e do INCT Combate à Fome
Marcelo Candido da Silva - Pesquisador do INCT Combate à Fome
Fonte: CEPEA
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